Uma irreverência entre a memória e a saudade


Há um fio ténue que liga a memória com a saudade. Chamei-lhe irreverência porque ele se move constantemente e em todas as direcções fazendo-me lembrar o vento que, vindo do mar, me afaga desde que nasci...


sábado, 18 de maio de 2013

Uma das poesia favoritas escrita por um saudoso amigo meu

Seria o Amor Português

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?

Fernando Assis Pacheco, in A Musa Irregular

FUGA


Não sei que dizer-te deste meu silêncio,
deste meu recolhimento mais forçado
que escolhido,
deste fuga do quotidiano
do manter-me em local bem escondido.

Não o procurei.
Foi-me imposto

por coisas,
talvez até pequenos nadas,
mas que a raiva me faz ver como Adamastores
e por isso nego-me a dobrar o cabo

que mais, do que de tormentas,
temo que seja espaço de outras dores.

Estou só e sem forças
e não avisto nenhum  piloto de D. João II
que me ate as mãos ao leme
e me faça lutar contra outro mar
que, mesmo desconhecido,
poderia talvez ser o que eu procuro,
aquele em que a calmaria
tornasse este meu corpo

um ser mais aberto à vida,
mas, hoje, sobretudo, renascido.

SS

segunda-feira, 13 de maio de 2013

OLHAR



 
 
Não precisamos de palavras entre nós.
O nosso olhar diz
tudo quanto queremos
e sentimos.
Nele se confundem
as vivências
de horas esquecidas
em que nenhum de nós pensa sermos dois.
É o registo único do quanto dizemos
e do que ficou por dizer nas horas partilhadas.
Por isso para nós
as palavras não são nada.
 
Se me queres
não fales.
Olha bem fundo de mim.
Para nos amarmos
basta-nos a fusão dos olhos com o silêncio.
SS