Uma irreverência entre a memória e a saudade


Há um fio ténue que liga a memória com a saudade. Chamei-lhe irreverência porque ele se move constantemente e em todas as direcções fazendo-me lembrar o vento que, vindo do mar, me afaga desde que nasci...


sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Penélope

Penélope

É a hora da partida
de armar com saudade o tear  
Com que tecerei o tempo que há-de vir.
Cada dia criarei um novo fio da teia
Que me liga à esperança da tua chegada
E que, em cada noite, desfarei
para criar a ilusão
Que alimentará o sonho
Do nosso reencontro em Ítaca,
Seja Ítaca onde ela for.

SS




quinta-feira, 9 de junho de 2016

Boa noite amor.
Vela por mim que estou sozinha
Nesta distância a que não me habituo,
Neste longe que me lembra medo,
Escuro e solidão.
Faz-me sonhar que estou contigo,
Abraça-me até que eu adormeça
E,por favor, não largues nunca da tua a minha mão.


SS

domingo, 17 de abril de 2016

PURIFICAÇÃO

A brisa trouxe-me o aroma da maresia 
E os gritos das gaivotas 
Enquanto o sol se afogava para lá do mar 
E pintava de vermelho a túnica que me cobria. 
Entrei na água para me despir 
Do fogo que aquela luz acendera. 
Nadei seguindo uma linha que não via 
Mas que acreditava que me iria levar 
a um lugar do horizonte 
Onde recuperasse na minha nudez 
A veste branca perdida 
e o meu ser fosse devolvido à lua 
A que pertenço 

Soror S

Diferença

Numa conversa banal 
Descobri Afinal 
Que tive uma vida antes de ti, 
Bem diferente, por sinal. 
Já tinha visto o pôr-do-sol 
E o amanhecer 
Bem antes de te conhecer. 
Já rira e já chorara, 
Com ou sem razão E em muitos dias. 
Até já amara 
Sem saber que existias. 
Esse trajecto 
De toda uma existência 
Foi um repto 
Uma espécie de sobrevivência 
Que me tornou diferente. 
A mulher que encontraste 
Acabou 
Quando lhe demonstraste 
Que, como numa equação, 
Há igualdade 
Entre duas identidades 
E que mais do que a força 
Quem nos guia É o coração.

Soror S

Saudade

Não sei se é saudade 
Este vazio que sinto 
E que me escorre pelo corpo. 
Não! Talvez seja apenas a falta do teu corpo, 
O sentir a tua pele a enxugar a minha, 
As tuas mãos a procurarem os meus dedos 
E a cruzarem-se com eles, 
O teu olhar que vem lá do fundo E
 se derrama sobre mim 
no justo instante em que acabas de me amar. 

Será mesmo que é só saudade 
Este vazio que sinto? 

SS

sexta-feira, 15 de abril de 2016

DÚVIDA

Se compreendesse a razão
do despropósito de teimar em explicar
esta tendência de abrigar dentro de mim
memórias e sonhos já passados, talvez descobrisse 
se a minha vida foi marcada por tudo quanto perdi 
ou pelo que ganhei a cada um dos passos dados 

SS

terça-feira, 5 de abril de 2016

A CRIAÇÃO DO AMOR

Depois de criar o mundo e o homem
Deus não descansou:

Com as nuvens
modelou as formas.
Com a luz
criou o sorriso.
Com a energia do sol
fez um coração a bater.
E de todo essa obra
Nasceu a MULHER.

Deus então parou
a rever o seu labor.
Olhou e gostou. 
Então foi buscar o homem,
levou-o  até ela
E com dois fez germinar o amor.

E, só então, Deus descansou...

SS

sábado, 2 de abril de 2016

QUERER

Cruzar o meu com o teu olhar
e imaginar que és uma réstia do sol que ficou em mim;

pressentir no meu rosto o o teu respirar
e pensar que és a brisa a beijar-me;
 
sonhar com os segredos de amor que escondes
nesse silêncio tão teu e tão profundo;
adormecerrmos os dois feitos um nó
e sentirmos que passamos para além do fim do mundo.
 


Se esta não fosse já a nossa forma de querer
Era a que escolheria para te oferecer.

SS

quinta-feira, 31 de março de 2016

ESPERANÇA


Chegaste até mim como as marés
entre recuos e avanços,
entre temporais e dias de bonança.
Talvez por isso me surpreendes a cada dia
e sinto que estás presente mesmo se ausente.
amar-te assim,mais do que paixão,
é um puro exercício de esperança.

GM

terça-feira, 29 de março de 2016

Despe-me, amor,
Como só tu o sabes fazer.
Devagar, muito devagar,
Afagando a pele que vai surgindo
E beijando-a por cada peça de que me libertas.
Que interessa que se espalhem pelo chão?
São inúteis para o que buscamos.
Só então  deixa que seja eu a descobrir o teu corpo
Mesmo que seja da forma atrapalhada     
Pela excitação de quem já não consegue parar.
Segura-me como se temesses que eu voasse.
Depois faz meu o teu mundo, qualquer que ele seja.
Mas, por favor não pares de me amar…

SS                                                                   

segunda-feira, 28 de março de 2016

VENTO SUÃO

Chegaste sem avisar
Até talvez sorrindo
Daquele modo especial
De quem vem para surpreender.
Enganaste-te porém.
Uma mulher lê nos astros
E o seu coração tem faro.
Sabia que vinhas a caminho
Porque já sentira o teu cheiro
Trazido pelo vento
Que, soprando até então do norte,
virara num repente a suão.
SS

quinta-feira, 24 de março de 2016

LINHAS

Não me apetece a tangência
porque me sugere linhas
que sobrevivem apenas se encostadas
mas cuja contínua fricção
fere toda uma existência.

Também não quero a intersecção
das linhas secantes
que se cruzam por momentos
para logo se afastarem
numa outra direcção.

Prefiro a equidistância
das linhas paralelas.
Caminhando lado a lado
nunca se perdem de vista
nem mesmo com a distância.

GM

terça-feira, 22 de março de 2016

Primavera

O Inverno
trouxe o fim da espera
pelo novo tempo que acaba de chegar
e prenuncia dias de paz
e de prazer.
A saudade
tornou-se ansiedade
de recuperar
o tempo perdido.
Promete emoção,
sentidos novos,
palavras de esperança,
silêncios alegremente partilhados,
tudo aquilo quanto o amor gera.

Despedido o longo frio do Inverno
Vivamos em amor esta nova Primavera.


SS

sábado, 19 de março de 2016


Há pouco senti uma porta bater
E pensei em ti, pai, 
porque era aquela a hora em que saías 
para trabalhar. 
e para me levares ao colégio
e depois ao liceu 
e, mais tarde, orgulhoso,
a Coimbra
Então disseste-me: 
Como vai ser bom quando te vier buscar
já doutora.
Isso não aconteceu
porque partiste da minha vida
logo nesse ano
e perdemos juntos 
a maior parte de nós: 
Não me viste formar
Não me levaste ao altar,
Não conheceste as tuas netas
(não conhecer é um modo de dizer, 
porque tanto falámos de ti
que até tens um bisneto João, como tu,
o mais novo da família)
Como vês, ainda és falado entre o mulherio
da casa que nos deixaste
(coisa estranha quando nem a tuas netas
nem as bisnetas te conheceram).
Talvez a minha mãe, com quem já estás,
te tenha falado das netas
porque com quem as bisnetas também não conviveu.

Pai
Hoje é dia dos pais cá na terra, como te lembrarás.
Um dia para te festejar.
Dentro de mim assim o farei
como o faço todos os dias
porque nunca senti que me tivesses abandonado.
Sempre te senti dentro de mim.

Espera! … senti agora mesmo 
Uma brisa leve a passar…
Não resististe…já percebi!
Desceste de onde estás só para me beijar.

Um beijo enorme embrulhado em saudade
Isabel

domingo, 13 de março de 2016

Olhaste no fundo dos meus olhos
e adivinhaste-me
tornando tuas as pequenas coisas
que eu julgava guardadas só em mim.
Leste o livro dos meus sonhos
e partilhaste-os com os teus,
num escrito a duas mãos
que mais do que de amor nos fala de vida,
da imagem do nosso dia-a-dia,
desta estranha maneira de ser e de estar.
Se alguém o conseguir ler
evite criticar.
Limite-se apenas a entender
que há mil modos distintos de cada um sentir
o que vulgarmente se designa por “amar”.
SS

sexta-feira, 11 de março de 2016

Frente a mim o mar



                                         Frente a mim o mar…
                                         Estranho mar de verão em pleno Inverno
                                         Planície sem fim, sem ondas, sem gaivotas.
                                         Estas, coitadas, confusas, em bandos espalhadas
                                         mudaram-se para terra em busca de outras rotas .

                                         Frente a mim o mar…
                                         O sol, o azul e o brilho do ar…
                                         Aquilo que dá repouso a este meu viver.
                                         Para ser feliz, não preciso de mais
                                         Bastam-me apenas os escassos momentos
                                         Em que o meu olhar naquele "sem fim" se vai perder.
                                     
                                              GM



quarta-feira, 9 de março de 2016

Resposta


O amor não precisa de razão nem de lugar
para existir.
Como uma brisa passageira
surge num repente
e procura alguém para acompanhar.
Viajante silencioso,
vai pairando como ave sem destino.
Onde se agrada aí ajeita o seu ninho.
Depois…
Bem … depois é  um assunto para resolver a dois.

SS

segunda-feira, 7 de março de 2016

DIA MUNDIAL DA MULHER



Na minha vida houve mulheres
Que passaram
E mulheres que ficaram,
Ainda que algumas já tenham partido.

As primeiras
não me deixaram nada
que me leve a recordá-las.
passaram pela minha vida
Mas nunca senti o bater dos seus corações.
Como pássaros migrantes voaram
Não deixando rasto nem recordações.

As segundas, ajudaram-me a crescer
por partilha de gestos e acções.
E foram e ainda são muitas aquelas
com quem aprendo a diário
a forma mais correcta de viver.
Umas, pela sua grandeza
outras pelos exemplos que a diário me dão.

Neste dia especial para todas nós                            
Aqui deixo o meu abraço para agradecer
a dádiva do segredo que a seu modo todas me ensinaram
O DE SABER TAMBÉM COMO SER MULHER

SS

domingo, 6 de março de 2016

NÓS

Entre nós só cabem
pensamentos escondidos
carícias disfarçadas,
palavra trocadas telegraficamente,
silêncios que gritam
mas que ninguém ouve,
excertos de frases interrompidas
que só nós entendemos,
pensamentos que não expressamos
mas que questionamos.

Isolados em nós,
somos ilha onde ninguém aporta
por isso o lugar ideal para nos amarmos.

SS

sábado, 5 de março de 2016

SAUDADES

Que saudades
Das tardes de que amarrávamos as pontas
Para que não se escapasse a espera de nós.
Ansiosos, entre risos e abraços,
Enlaçávamos os nossos corpos
num amor feito inteiro de sensualidade
e que repetíamos sem parar
Porque amar para nós é algo urgente.
SS

sexta-feira, 4 de março de 2016

DESEJO

Nas tardes de chuva
que este inverno nos tem oferecido,
tenho sentido um estranho desejo de ti.
É um desejo que fala comigo
e persegue o meu quotidiano
tal como quando estamos presentes.                                                                            
Nunca refere a distância
e é tão real
que o sinto na pele
e me sabe aos beijos que trocamos
nos momentos mais ardentes.

SS


domingo, 28 de fevereiro de 2016

CINZA E BAÇO

Cinza e baço

o dia passou lento
esvaziado de interesse
sem nenhuma novidade.
Nada me despertou.
Acabei no silêncio
do tempo vazio
e da solidão.
Nem o telefone tocou.
Agora vou esperar a noite.
Talvez o calor dos lençóis,
ao envolver o meu corpo por amar,
me traga ainda o que o dia enjeitou.

SS

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

OLHAR

Sabe-me bem a tua voz
apesar de nunca me sussurrar
palavras de amor.
Preferes o silêncio do olhar
para o fazeres.
Ele vem de dentro de dentro de ti e diz-me mais
do que as palavras o fariam
porque me envolve por inteiro.

E quando me tomas nos teus braços
Para partires para o amor
É sempre ele quem me ama em primeiro.

SS

Gaivotas

O sol acordou,
Bocejou
e afastou uma nuvem que passava.
Espreitou tímido os telhados da cidade.
Levantou a cabeça
e piscou os olhos à lua que lá no céu se despedia da noite.
Espreguiçou-se de mansinho sobre a praia
e, na ponta de cada raio, brilharam as gaivotas que voavam sobre o mar.


GM

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

SONHO

Sentar-nos lado a lado
quase sem falar
(como tu gostas);
olharmos ambos na mesma direcção 
(não interessa qual
desde que para além do chão);
deixarmos voar o pensamento sem limites
e pensarmos ser capazes de dominar tudo,
(até mesmo o tempo)
far-nos-ia crer sermos donos do mundo
e senhores de todo o conhecimento.

SS


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016


Em dia de festejarmos a LÍNGUA MATERNA nada como recordar o poeta 


Lamento para a língua portuguesa
Vasco Graça Moura (1942-2014) 

não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia a dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
em que, por nos perdermos, te perdias.
neste turvo presente tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
da violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tempos de ignomínia mais feliz
e o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de seres de vastos, vários e distantes
mundos que serves mal nos degradantes
modos de nós contigo. nem o grito
da vida e do poema são bastantes,
por ser devido a um outro e duro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste. eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.

Vasco Graça Moura (1942-2014)